sexta-feira, 14 de março de 2014

QUEM É O COITADINHO?



Me considero quase um nômade: nasci em Porto Alegre, fui para o Alegrete com 6 anos e com aos 16 cheguei em Bento Gonçalves, aonde vivo até hoje. Nesta época eu não tinha noção disso de forma tão esclarecida, mas sem dúvida foi a melhor escolha em termos de cidade para o caminho que eu estava iniciando, ao estar próximo das melhores faculdades e de um mercado de trabalho pulsante. Sou eternamente grato a minha família pela escolha.

Acontece que o ano mais complicado da minha vida foi esse, quando cheguei em Bento. A recepção foi muito estranha: aqui eu descobri que sou negro. Passei por diversas situações como por exemplo, ser chamado de preto sujo (inclusive por gente que convivo até hoje). Em uma situação ímpar, um senhor me dava o seu ponto de vista: “Não é porque tu tem essa pele mais escurinha, mas maldita a hora que a Princesa Isabel resolveu abolir a escravatura né?”.
Em casos mais recorrentes a conversa era assim:
- De onde tu é?
- Eu moro aqui em Bento.
- Mas tu não é daqui né?
- Não, sou de Marte. (mentira, eu dizia que era de Alegrete, mas depois de um tempo eu comecei a pensar em responder isso).
É muito estranho tu ser abordado pelas pessoas dizendo que o teu biotipo determina que tu não se enquadra na comunidade deles. Não fui preparado para me apresentar com selo de procedência. Fere valores de quem foi criado no meio de gente de todas raças e classes.
- Mas de que origem é a tua família?
- Olha é uma mistura grande, tem português, espanhol pelo lado da minha avó, deve ter um índio no meio...
- Hum, então tu é pelo duro lá da fronteira?
- Olha, nascer eu nasci em Porto Alegre, mas cresci em Alegrete...
- Hummmmm, tem mistura com bugres.
Não sei o que queriam dizer com isso, mas a sensação que sempre dava, era de que eu era um intruso. Não era legal. Mas hoje me enche de orgulho saber que faço parte de um país miscigenado. Como dizia num livro que tive acesso: “as famílias de um bairro de Bento eram predominantemente da raça brasileira”. Nem sabia que ser brasileiro era raça, mas se for, sou dela.

Esse é um lado da história. Mas de lá pra cá fiz muita coisa boa em Bento, aprendi muito, criei amizades maravilhosas. Me tornei o profissional de comunicação e marketing que me orgulho, graças ao que aprendi aqui. Além disso, fui muito bem recebido por famílias de origem italiana, tive namoradas e inclusive tenho um filho com uma gringona linda. (detalhe: que mistura linda ficou o nosso filho). Tenho tantas histórias alegres, quanto tristes.

Sofri racismo e fui amado. Continuarei sofrendo racismo? Ninguém pode garantir, mas tenho certeza que continuarei sendo bem tratado por essa cidade que me acolheu e deu muito para a minha família. Tive colegas e amigos no meu primeiro ano aqui, aonde muitas vezes eu tive a sensação que estavam cuidando de mim. Se certificando que as outras manifestações não chegassem perto de mim. Todos sabíamos que elas existiam.

Hoje, em 2014, costumo dizer para as pessoas que vêm de outras cidades: agora é mais fácil, tu vai te adaptar. É um fato. Esse tipo de racismo, hoje velado, já foi escancarado. Quem me julgava pela pele mais escura, hoje sabe que tem que ficar calado, do contrário vai dar zebra. E dá mesmo. Mudou o que ele pensa? Não sei, mas proibir de dizer essas coisas ajuda bastante. Pelo menos não me incomoda e não alimenta a burrice coletiva.

Falar do racismo em Bento não é coisa do passado ou de minorias insignificantes. Acho que é uma sujeira que precisa ser eliminada e não escondida em baixo do tapete. É botar as cartas na mesa e deixarmos claro que quem pensa assim, deve ficar calado. Não, não pode xingar ou diminuir ninguém pela sua cor e ponto final. Sacou?
- Mas então não pode nem chamar um alemão de alemão?
- Se ele não gosta, não pode.
- Mas tu te importa que eu te chame de negão?
- Se tu estiver querendo ser carinhoso comigo, eu vou entender. Se tu quiser me ofender eu vou entender também.
Ninguém trouxe o assunto a tona para prejudicar a cidade. Quem tem interesse nisso? Aconteceu e talvez hoje estejamos pagando pelos erros do passado, que devemos erradicar, com educação e diálogo. Me incluo nisso, pois acho que é um problema que a solução também passa por mim, afinal sou daqui (posso dizer isso?).

Não escrevi esse texto para me fazer de coitadinho, muito pelo contrário, amo minha vida em Bento, sou feliz aqui e acho que o juiz de futebol não se fez de coitadinho. Como diria o Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Me vi lembrando de muita coisa, com toda a discussão por causa do caso, precisava compartilhar.

- Putz, mas essa história de defender negros, direitos humanos... querem é se fazer de coitados para ganhar cotas disso, bolsa daquilo...
- Oi?
Esse último suposto diálogo nunca aconteceu comigo. Acho que nunca aconteceria e se acontecer a culpa não é de Bento, com certeza não. Mas se um dia rolar, escrevo outro texto para contar.

3 comentários:

  1. Também sou de Poa radicado aqui na Gringoland. Acho que as nossas experiências são de "Injúria Racial" e não "Racismo". As mesmas que sofreram ou ainda sofrem os ítalo-descendentes. No meu tempo de escola bastava um colega gringo delatar sua origem numa palavra com dois erres para sofrer assédio moral do próprio professor e ser motivo de deboche de alguns colegas moradores do centro, que tinham sempre o adjetivo 'pejorativo' COLONO, na ponta da língua. Lembro de alguns de meus queridos amigos se esforçando para pronunciar os 'erres' como eu e meus irmãos. Era uma tragédia com palavras como: burraco,arreia,arranha, etc. No fim é só a dança das minorias e maiorias exibindo sem receio uma das maiores falhas de caráter do ser humano.

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  2. Pois é Rodolfo véio, aqui quem escreve é o Diego Motta (muuuuuu), mas sabe que no nosso Alegrete isso também acontecia. Lembro que a minha vó de descendência alemã e espanhola não era muito chegada ao casamento do meu pai (bugre) com a mãe.
    Mas o casamento aconteceu, eu e a mana nascemos e ela teve de se adaptar, acho que isso irá ficar para trás com cada nova geração. O racismo é uma herança que vamos perder com o tempo, pois com o tempo a minha avó passou a gostar e confiar no meu pai.
    É engraçado pois muitos podem amar realmente um amigo negro, e ao ver outro o qual ele não tem contato falar uma besteira racista.
    Ser humano...o bicho complicado!!!
    Abraço grande meu amigo

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  3. Parabéns pelo texto Negão! Saudade do amigo e do tempo do Alegrete! Abração!

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